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quarta-feira, 27 de abril de 2016

A síndrome de governanta


Por Gustl Rosenkranz


Sobre um sério desvio de comportamento e a disputa de poder em relacionamentos com empregados e prestadores de serviços
 
Gostaria de escrever sobre algo que parece ocorrer muito quando contratamos algum empregado ou alguma prestação de serviço mais demorada. Batizei o fenômeno de “síndrome de governanta” porque o observei por muito tempo e em muitas ocasiões na área doméstica, com diaristas ou mesmo empregados, mas estou convicto de que o observado pode ser tranquilamente estendido a muitas outras áreas.

Registrei esse fenômeno pela primeira vez na casa de um casal amigo, quando o visitava em Salvador e vi que a empregada doméstica, que lá já trabalhava há longo tempo, era quem mandava na casa. Ela decidia praticamente tudo e dava até bronca nos patrões quando eles faziam algo (dentro da própria casa!) que não era de seu agrado. E o casal calava-se, baixava a cabeça e, mesmo sem gostar nada do jeito da mulher, fazia o que ela mandava. Questionei depois o porquê e eles, cochichando para a “governanta” não escutar, me explicaram que ela já trabalhava há muito tempo para eles e ameaçava ir embora toda vez que era contradita. Não foi difícil perceber que havia uma dependência, uma dependência que hoje sei que sempre existe quando um relacionamento de trabalho é acometido por essa síndrome.

Vi esse tipo de coisa acontecendo com várias pessoas e eu mesmo fiz minhas experiências. Quando vivia em Munique, tive, por exemplo, uma diarista que vinha limpar o apartamento uma vez por semana. Tenho que admitir que a mulher trabalhava muito bem. A casa ficava totalmente limpa, ela não tinha preguiça de arrastar móveis ou subir em escada e limpava até cantos que eu mesmo jamais limparia por serem de difícil acesso. E, no início, tudo correu bem, tanto que eu a recomendava a outras pessoas, dando sempre boas referências. Ela até fazia bem mais do que acertado, fazendo bolos quando eu ou alguém próximo a mim tinha aniversário, cuidava de meu filho, satisfazendo suas vontades e administrava tudo tão bem que também no meu caso foi surgindo uma dependência, com ela assumindo cada vez mais funções em minha vida e eu aceitando com gratidão e por comodismo.
Com o passar do tempo, a coisa foi piorando, com essa mulher começando a dar palpites em minha vida, querendo controlar tudo, chegando ao ponto de eu certa vez chegar à sala e procurar um pequeno vaso que havia ganhado de presente de uma amiga, sem encontrá-lo em lugar algum. Imaginei que a diarista o havia guardado e lhe perguntei então quando ela veio alguns dias depois. Jamais esquecerei o que então ocorreu: a mulher, sem qualquer constrangimento, me disse que havia jogado “aquele troço feio” fora, pois não combinava com minha casa. Fiquei primeiro pasmo, sem conseguir dizer uma palavra, mas depois, indignado com o absurdo da coisa, disse-lhe claramente, porém com diplomacia, que ela havia ultrapassado um limite e pedi que jamais repetisse tal atitude, já que a casa seria minha e era eu quem decidia se algo deveria ser jogado fora ou não. Para minha surpresa, a mulher, ao invés de se desculpar, fez cara feia, torceu os beiços e ameaçou ir embora, no mesmo comportamento da empregada de meus amigos em Salvador.

Nada satisfeito, calei-me assim mesmo porque não queria que ela se fosse (relacionamento de dependência!), mas, no fundo, já sabia que os dias dela em minha casa estariam contados. Ela trabalhou para mim ainda por um tempo, com a situação piorando cada vez mais, com a mulher se espalhando em minha casa e minha vida e com ambos de cara feia: eu porque não gostava daquele seu comportamento e ela por eu não aceitar a autoridade que ela acreditava ter. Bom, a coisa terminou num dia quando eu estava na sala, falando ao telefone com um cliente e ela entrou para limpar, fazendo muito barulho e dando-me a impressão de querer incomodar de propósito. A “brincadeira” acabou quando ela chegou perto de mim, ficou escutando a conversa e dando palpites sobre o que eu falava com o cliente. Pedi desculpas ao cliente, disse que retornaria a ligação mais tarde, levantei e a mandei embora de imediato.

Conheço tantos exemplos que não acredito que se sejam casos isolados. Lembro-me, por exemplo, de um conhecido, que tinha um sítio e contratou um rapaz para trabalhar lá. Esse conhecido tratava o empregado muito bem, na verdade como se fosse alguém da família, pagava bem e o dava toda liberdade possível. Também aqui a coisa funcionou direitinho no início, mas mudou com o tempo, com o rapaz se espalhando cada vez mais, fazendo as coisas como achava que deveria fazer e ignorando as instruções do patrão, que viajava muito e tinha muitas surpresas quando chegava de viagem e via que o rapaz, na verdade, se comportava como se ele fosse o dono do sítio e o patrão um visitante qualquer.

Interessante é que todos os casos observados tinham características comuns: os patrões eram pessoas corretas e justas, que tratavam os empregados/prestadores de serviços com respeito, os empregados/contratados sempre se esforçavam muito no começo, fazendo normalmente bem mais que sua obrigação, o que sempre gerava uma situação de dependência para o patrão.

Refleti sobre o que estaria por trás disso e me parece que o problema está na necessidade humana (ou pelo menos de determinados seres humanos) de exercitar poder. Sabemos que empregados muitas vezes são maltratados e às vezes até humilhados por patrões – o que é um absurdo evidente! Esses empregados aceitam isso por dependerem financeiramente desses patrões. Quando eles então trabalham para alguém que age de forma diferente, tentando ser justo e tratando empregados com respeito e dignidade, veem então esse patrão como uma pessoa fraca, sem autoridade. No início, os empregados, que precisam trabalhar para sobreviver, agem com humildade e aceitam as regras, mas, com o passar do tempo, tentam dominar os patrões “fracos” que, em seus olhos, não precisam ser temidos e muito menos respeitados. Eles criam então primeiro uma situação de dependência para se sentirem numa posição mais forte, fazendo depois uso desse suposto poder contra aqueles que lhe acolheram e deram trabalho.

Constato que isso não ocorre somente no ambiente doméstico e não somente entre patrões e empregados. Todos nós conhecemos situações em lojas, por exemplo, quando precisamos da ajuda de algum vendedor e somos tratados como se estivéssemos pedindo algum favor, sentindo na pele o desprezo daqueles que estão ali, ganhando para nos atender, mas que acham que são eles que determinam as regras do negócio. E quem não conhece os atendentes de consultórios médicos que usam de seu poder (já que normalmente não temos acesso aos médicos sem passar por eles!) para humilhar e tratar mal os pacientes?

Bom, como então lidar com isso? Penso que seria uma solução errada fazer o mesmo, demonstrar poder e tratar essas “governantas da vida” sem o devido respeito e humilhando-as, como, infelizmente, muitos fazem. Muito mais inteligente e eficaz seria, em minha opinião, manter sempre uma distância saudável, evitando um relacionamento muito pessoal e frisando o lado profissional, sendo gentil, justo e humano, mas exigindo o claro cumprimento de regras desde o início, cortando de imediato qualquer desvio de comportamento e deixando sempre evidente o papel de cada um no relacionamento trabalhista/de negócio. Se nada disso funcionar, devemos cortar radicalmente o relacionamento, mandando o empregado embora, procurando outra loja ou falando com a gerência ou alertando o médico/a médica sobre a postura de seus atendentes, trocando de consultório se não houver uma solução satisfatória. E, quando um corte radical não for possível, por mais forte que seja a tentação, nunca devemos entrar numa disputa de poder, pois isso, além de desgastante, não é necessário, já que você como patrão (ou como cliente/paciente) já se encontra no lado mais forte. Só basta ter consciência disso e se posicionar claramente, recusando os abusos das “governantas” que cruzam nosso caminho.

Texto Original: Caminhos

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